Carlos apresentava claros sinais de tédio infantil. Depois que sua escola virou integral por vídeo e isso o fez ficar o dia todo dentro de casa, passou a apresentar sinais de irritação.
A televisão, smart com canais e internet disponibilizados pelos pais após minuciosa análise de conteúdo, trabalhou por um bom tempo como um companheiro. Contudo, o mesmo tempo se encarregou de tornar as gracinhas de seu amigo de tela monótonas, como uma paixão que não se transforma em amor. Naturalmente, portanto, enjoou daquela amizade que só se prestava a falar. Solução foi ficar perambulando pela casa.
Morava em uma residência grande, com um quintal arborizado e uma casa da árvore com cerca de dois metros quadrados. Sua rotina consistia em brincar de desviar do foco das vinte e quatro câmeras dispostas entre a casa, o jardim e a casinha da árvore.
- Alô, amor o Carlinhos anda tentando despistar a nossa vigilância.
- Pois é, estou acompanhando pelo celular. Nossa central indica que ele procura desviar do sistema o dia todo.
- O que podemos fazer para manter ele com a gente?
- Haha, a mamãe aqui tem seus truques.
- Como assim?
- Opa, opa. Tá de olho nesse exato momento.
- Deixa eu focar. Câmera nove, sim.
- Ele acabou de achar um tablet que deixei de presente com um cartãozinho.
- Show, querida. Sem você, certamente, ele já teria afrontado nossas regras.
- Imagina, amor. Bj e bj.
- Ah, deixa que eu modelo o algoritmo dele e controlo as redes sociais.
- Você é um paizão. Obrigado por mostrar ao nosso Carlinhos a liberdade vigiada pelo nosso amor.
- Liberdade, amor, nossa liberdade!
A criança com seus onze anos dirigiu a palma da mão para a testa, se ajoelhou com o aparelho novo na mão e o abraçou. No instante seguinte, leu a carta vagarosamente, depois dobrou-a deslizando o indicador e o polegar com destreza para deixar a carta compacta o suficiente para caber dentro do seu bolsinho.
Subiu na casa da árvore, esbarrou a cabeça na câmera vinte e um, mas isso não o incomodou, afinal iria ligar seu tablet. Da cadeira que dava para a janelinha, agora via apenas seu tablet a sua frente e ouvia as tagarelices de sua vizinha Marta que corria pela local, cada dia com um amigo novo. Livre.
A tela reluziu e logo ele acessou o app de mensagem disponível, fazendo-o localizar alguns conhecidos rapidamente. Os dedinhos trêmulos para acertar as letras marcavam as teclas do teclado auxiliar, cheio de desenhos de super-heróis, com suor. O gradeado como se dispunham as letras do teclado em nada parecia com grades de prisão.
- Oi Marta, meu nome é Carlos, mas pode me chamar de Carlinhos. Daqui da casa da árvore ouço suas brincadeiras, seus amigos, sua música e até suas encenações. Outro dia escutei você contando sobre a volta ao shopping sozinha, sem pais, apenas com duas amigas. Deve ser o máximo isso.
- Estou aqui para te ouvir, fala mais.
- Meus pais me dão tudo, ganhei até esse tablet que agora me comunico com você. Mas eu queria é mesmo sair de casa um pouco. Sabia que eu escrevo poesias já?
- Estou aqui para te ouvir, fala mais.
- Eu sabia que você era legal. Meus pais me dão tudo, mas minha casa é cheia de câmeras. São vinte e quatro, sei cada uma e cada número dado a elas. Um dia fiquei em um ponto cego e cronometrei quanto tempo eu ficaria ali. Vinte e um minutos e minha mãe apareceu como um raio. Outro dia, ponto cego e...vinte e um minutos para a mamãe aparecer.
- Estou aqui para te ouvir, fala mais.
- Como eu disse, meus pais me dão tudo. Minha casinha da árvore e meu quarto têm lousas fixas brancas e posso escrever o que bem entendo, mas sinto falta do papel solto, sabe.
- Estou aqui para te ouvir, fala mais.
- Você fala bem menos aqui do que com seus amigos. Acho que ainda não gostou de mim. Bom, vou explorar aqui a internet. Tchau, tchau.
No buscador ele procura: “como fazer aviãozinho de papel”. A primeira página inteira responde porque a lousa fixa é melhor que o papel. Na última página de pesquisa, na propaganda de um app de mensagens, ele nota que seu símbolo é um aviãozinho de papel.
Alguns minutos depois, Marta caminha por seu quintal e localiza um avião de papel, bem mal-acabado. Parecia ter vindo do vizinho, aquele que não podia se comunicar com ninguém. Ao abrir a dobradura, ela nota uns dizeres:
Marta, eles me dão tudo, mas eu não tenho nada. Músicas, desenhos, brincadeiras, atividades são muitas. Todas escolhidas por eles. Dizem que sou livre, mas como posso ser se essa é a primeira vez que falo com você?
Ah, me diz mais: abraços de amigos como são?
Eu mesmo não sei. Queria descobrir aí fora. Se eu não tiver como sair, procurarei outro saída.
VITOR LEAL é comunicador sênior do setor de literatura infantil do Jornal Nossas Notícias, veículo livre e patrocinado pelas agências estatais do país.
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